" LUÍS CONCEIÇÃO
NAS MINHAS qualidades de Cidadão, Arquitecto, de Professor e de Director de Cursos de Arquitectura, gostaria, em primeiro lugar, de me congratular pelo novo modelo de relação entre a Ordem dos Arquitectos e as Escolas de Arquitectura, que responde aos modelos que tenho vindo a defender, pelo menos, nos últimos dez anos. Verifica-se a expressão popular: o seu a seu dono...
As questões que se colocam hoje à formação do Arquitecto relacionam-se, como sempre, e em primeiro lugar, com o seu espaço de acção, ou seja, com as condicionantes e a amplitude do exercício da sua prática profissional.
Em primeiro lugar, com a integração do ensino da Arquitectura na Universidade, alteraram-se alguns dos pressupostos que anteriormente definiam a sua formação e, por conseguinte o modo e o âmbito do exercício da profissão.
O Arquitecto era formado ou formatado para o exercício específico de determinadas tarefas não necessariamente exclusivas, ou seja, que iria partilhar, numa extensão hierárquica de qualidade, com muitos outros profissionais, mais ou menos "formados", mais ou menos "jeitosos", construindo-se essa formação numa tarimba de suporte técnico-profissional, apoiada em "salas de risco", fossem elas escritórios privados (os ateliers no sul e escritórios no norte) ou locais de ensino público - as Escolas de Belas Artes, a seu tempo Superiores.
Socialmente, o Arquitecto era chamado para conceber edifícios públicos diferenciados e alguns edifícios privados igualmente diferenciados. Noventa e nove por cento das edificações (passo o rigor dos números) eram traçadas por construtores que, também eles, adivinham de uma formação pragmática assente nos mesteres, na transmissão de saberes adquiridos numa relação mestre /aprendiz, igualmente digna, mas menos erudita e versada nas modas internacionais e nos saberes que, nessa mesma erudição, incluíam as Belas Artes e a História da Arte. Durante séculos co-existiram estas duas formações e subsequentes actividades profissionais, chegando quase incólumes à segunda metade do século XX, no nosso país.
A integração do ensino da Arquitectura no âmbito universitário, juntamente com as conjunturas que o determinaram, veio levantar algumas questões, que porventura não serão um exclusivo da Arquitectura, não deixando por isso de ser pertinentes. A primeira prende-se com a definição do âmbito da profissão, em termos corporativos, criando um afastamento exponencial relativamente a todos os outros tradicionais agentes da concepção arquitectónica. A obsolescência do Decreto-Lei 73/73 é disso sinal e paradigma.
A segunda prende-se com o desenvolvimento tecnológico que acompanhou este processo nos últimos 150 anos, e que veio a originar a necessidade de outros saberes e de outros agentes desses saberes, concorrentes e complementares, para a implementação do projecto e das edificações: a electricidade, as instalações mecânicas, a complexidade das estruturas induzida pelo aço e pelo betão armado, a integração de infra-estruturas sanitárias, etc, vieram retirar ao Arquitecto a exclusividade conceptual, impondo um novo conceito de trabalho em equipa, ainda hoje em exponencial crescimento - acústica, luminotecnia, sustentabilidade, gestão, marketing, design de interiores e de equipamento, etc.
Os grandes estúdios de Arquitectura actuais contêm já, nas suas equipas, psicólogos, filósofos, historiadores, a par de profissionais vindos de novas tecnologias de ponta, como a astrofísica ou as ciências biofísicas.
De igual modo, a globalização propiciada pelo crescimento das tecnologias da proxémia - transportes rápidos e acessíveis, Internet, gps, etc. - veio alargar o campo territorial de acção do Arquitecto, bem como gerar níveis de complexidade conceptual ainda hoje não totalmente compreendidos e analisados.
No que diz directamente respeito ao ensino da Arquitectura, ou à formação do Arquitecto, poderemos afirmar que a tradicional prática de atelier já não é suficiente, sendo mandatória uma rotina de investigação, por um lado polissémica e por outro dirigida, de profundis, a diversas áreas de especialização, sendo uma boa equipa aquela que consiga integrar um vasto acervo de criativos generalistas e de especialistas criativos nas diversas áreas e saberes conducentes à concepção arquitectónica. O peso da disciplina do Projecto em estúdio começa já a ser posto em causa em algumas escolas americanas, por exemplo, dando-se maior ênfase a áreas de investigação até agora consideradas complementares na formação do Arquitecto.
De igual modo, emerge já, hoje, nos EUA, uma fonte de ensino alternativo às escolas e universidades, com financiamento público, assente nas próprias unidades de produção, as grandes empresas de projecto, numa óptica de integração do postulante arquitecto numa cadeia de produção e de formação que não é já o tradicional atelier, mas a empresa polissémica composta por agentes generaiistas e especialistas dos diversos saberes concorrentes para a concepção de edifícios e conjuntos urbanos, mas também numa sistemática prática de investigação laboratorial que a concorrência no mercado global obriga e determina, como noutras áreas da produção.
Pergunta-se: estará a Universidade hoje e aqui preparada para fazer face a esta nova emergência formativa? Estará o actual sistema de Ensino Superior, no caso concreto da Arquitectura, adequado à rápida transformação a que o exercício e a prática da profissão obrigam? Estarão os formadores, docentes universitários portugueses, atentos a esta mutação e preparados para as exigências de adequação da sua prática lectiva e pedagógica, nomeadamente no que diz respeito às necessidades de rotinas de investigação sistemática e continuada? Estará, no seu todo, o corpo docente universitário português (em que me incluo) preparado para substituir a pedagogia da transmissão e aferição de saberes por uma pedagogia de construção e aquisição de competências, implícita no espírito de Bolonha? Se tal pode ser verdade no ensino do Projecto, a áreas afins, o mesmo não se passa necessariamente no que concerne aos saberes complementares da formação do Arquitecto.
Outro aspecto novo, emergente, prende-se com a mobilidade. A mobilidade do Arquitecto, a mobilidade do cliente, a mobilidade do espaço de acção dos arquitectos. A mobilidade do próprio espaço arquitectónico. A Comunidade Europeia veio-nos imprimir esta nova exigência, ou condição sine qua non do exercício do projecto de arquitectura. Situação já normal nos países desenvolvidos e, em particular nos EUA, desde a Segunda Guerra Mundial, a mobilidade como must chegou até nós, desenhando-se, tenuemente, no âmbito das Universidades, através de programas como o Sócrates, Erasmus e Leonardo Da Vinci. O conceito subjacente à Declaração de Bolonha e suas sucedâneas, vem dar nova força a esta necessidade.
O tempo em que o Arquitecto morava na Avenida da Igreja, tinha emprego nas Construções Escolares, na Praça de Alvalade e ia ao fim da tarde ao atelier, numa perpendicular à Av. De Roma, está a chegar ao fim. Belos tempos...
O estudante de Arquitectura contemporâneo, não só tem que desenvolver hábitos de investigação logo no início do curso, como tem que se confrontar, desde cedo, com a mobilidade, com o confronto de culturas, de línguas, de diferentes hábitos de trabalho, se quiser fazer parte do futuro. A Universidade tem que lhe proporcionar os meios adequados para o efeito, porque o futuro, em Portugal, representa já o passado do presente do mundo desenvolvido de que queremos fazer parte.
Caros Colegas, não é minha intenção vir aqui fazer futurologia nem apresentar cenários do Megalopolis de Fritz Lang, ou dos futurismos de George Orwell. Os cenários que aqui vos apresento estão aí, no território, no mercado, e chegaram para ficar há já algum tempo. Sabemos que o mercado de trabalho dos nossos jovens Arquitectos está em Angola, em Timor, na Guiné, na China, na Índia, nos países em desenvolvimento. Tal como sabemos que a formação na indústria do vestuário já não se compadece com os pequenos/grandes alfaiates, mas sim com as cadeias de pronto-a-vestir em que equipas de várias formações e gabinetes de investigação partilham o território conceptual. Compete às Universidades não só acompanhar, mas sobretudo estar à frente, conduzir esta tendência crescente e abrir novos caminhos. Isso constrói-se, em economias de mercado, através da concorrência, mas para que ela seja salutar e útil, a montante deverá existir a ética, o diálogo, a troca de experiências, o debate.
Esse debate não existe, na nossa área, no nosso País, porque as Universidades estão de costas voltadas, ou trabalhando em pequenos lobbies fechados. As instituições públicas ignoram, desdenham e desconfiam das instituições privadas. Algumas instituições privadas ainda não entenderam que a sua sobrevivência deve assentar na identidade e na qualidade do seu trabalho e não na imitação dos erros do ensino público instalado e entropizado. A investigação é cada vez mais mandatória no quadro da formação universitária e pós universitária. Em todo o mundo civilizado está aberto o debate sobre o que é investigação em Arquitectura: onde está esse debate em Portugal?
Sabemos, da prática do nosso próprio associativismo, que quanto maior for o debate e o confronto de ideias e conceitos, maior é a nossa capacidade de afirmação, maior é a capacidade de afirmação da nossa identidade, individual e colectiva, mais profícua será a nossa actuação.
É neste sentido que venho aqui, nesta egrégora, propor, (por achar que este é, ainda, o local e o momento adequado para o efeito), a criação, assente na pluridisciplinaridade, fora ou dentro do âmbito da Ordem dos Arquitectos, de uma Associação Portuguesa para o Ensino da Arquitectura, que congregue todos os docentes, Arquitectos ou não, dos vinte e tal Cursos de Arquitectura existentes no nosso País e, em particular, as respectivas Escolas, integrada na AEEA/EAAE -Associação Europeia para o Ensino da Arquitectura e na ENHSA - Rede Europeia de Directores de Escolas de Arquitectura, instituições com, respectivamente, 30 e 9 anos de existência, que têm vindo a tomar expressão no debate Europeu e Internacional das questões que envolvem o ensino e a investigação académica em Arquitectura, nomeadamente na implementação do processo de Bolonha.
Esta Associação livre, que pode e deve nascer, quer no âmbito, quer acarinhada pela única entidade portuguesa que agrega os Arquitectos Portugueses - a Ordem dos Arquitectos -, deverá, no meu entender, instituir-se como associação independente, mas dialogante e cooperante com a OA. De igual modo, manifesto a mesma opinião relativamente à urgente criação de um Sindicato de Arquitectos, já que uma grande maioria dos Arquitectos Portugueses, independentemente do seu eventual exercício em profissão liberal, trabalha como assalariada.
A Ordem, como recente herdeira da antiga Associação dos Arquitectos que foi, como alguém um dia disse, uma espécie de associação dos antigos alunos da ESBAL e da ESBAP, deveria reconhecer e apoiar a promoção destas duas novas associações, já que é a única instituição que reúne hoje, praticamente todos os Arquitectos Portugueses.
Quando, finalmente, tivermos uma Ordem de Arquitectos Portugueses, com os respectivos Colégios de Especialidade, um Sindicato Nacional de Arquitectos, uma Associação Nacional de Estudantes de Arquitectura e uma Associação Portuguesa para o Ensino da Arquitectura (aberta quer às Escolas, quer aos respectivos docentes e investigadores), teremos um campo de acção e debate enriquecido e enriquecedor da classe e da prática da Arquitectura em Portugal.
Lanço-vos o repto e desde já me ofereço para integrar um grupo de trabalho que vise a sua implementação.
Director do Departamento de Arquitectura, Urbanismo, Geografia e Artes Plásticas da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias " |